terça-feira, 24 de março de 2009

Lillyan

Ele se olha no espelho com certa repugnância. Não entendam mal. Ele se ama. Mas a figura quadrada, azul, manchada e enrugada não lhe agrada de modo algum. De todas as escolhas que faz em toda a vida, esta é a mais fácil. Transformar-se. Não no sentido auto-ajuda que todos conhecem. É algo mais amplo. É uma transformação física, externa, de caráter e de profissão. A vida aos poucos começa a ter mais sentido. Não importa mais o que as pessoas pensavam de você há poucos minutos atrás. Agora é o seu momento. Hora de lentamente começar a viver o que se deseja. Ela não é mais aquela figura normal, efadonha e decrépita. Ela é mais. Ela é uma mulher agora.

Sua aparência não reflete, infelizmente, o estado de espírito. Evitando os olhares da cidade, a figura se dirige ao lugar onde realmente brilha. A ansiedade se confirma quando os poucos que a vêem a qualificam como "estranha". O que a diferencia não é, de forma alguma, sua aparência. É a ousadia com a qual ela revela sua verdadeira forma. Que obcenamente ultrajante para um homem se transformar em fêmea.


Música acelerada, gritos, corpos em movimentos entorpecentes. Esta é sua casa. De que importa o mundo inteiro quando se tem 200 metros quadrados onde se pode literalmente brilhar? Lá ele aprendeu que tudo é permitido. Lá encontra amigos e inimigos. Amores, todos não correspondidos. E é lá mesmo que a realidade se refaz. Uma dose, por favor.


Velho, barrigudo, fedorento e, pior, casado. Saem da boate em seu carro de 150 mil. Vão para o motel de 15, longe, pra não chamar atenção. Lá a repressão desaparece e duas pessoas se permitem viver de verdade. Uma, ao dominar e submeter um símbolo de sua tristeza diária ao pior dos tratamentos já inventados. O outro por se anular e se transformar naquilo que mais odeia.

Banho, pagamento, carona, casa. Domingo estranho. Segunda-feira deprimente. O resto vai passando. A seu modo, cada um se vê deparado com um mundo que não quer ver. Um mundo no qual não gostariam de participar. Mas tudo perfeitamente tolerável, desde que sempre haja um próximo sábado.